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07
Out22

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José Pacheco

A demolição do Panteão dos Fundadores e Heróis do Ocidente

Alastair Crooke – 3 de outubro de 2022

As euro-élites precisavam desesperadamente de um sistema de valores para preencher a lacuna. A solução, porém, estava à mão. 
O incêndio de Alexandria, xilogravuras de Hermann Göll, 1876.

Os defensores da primazia americana dentro dos Estados Unidos sempre se movem com os tempos, contando com as tendências predominantes para reimaginar a justificativa para seu “excepcionalismo” por meio de novas imagens.

A ascensão do identitarismo woke/liberal promovido por ativistas, e orientado para justiça social, forneceu a seus soldados sua mais nova justificativa. Não é apenas uma nova ‘política’, mas é algo diferente: é uma ideologia que não tolera ‘alternativas’; tampouco discussão, mas exige simplesmente a sinalização de lealdade e conformidade com um código “progressista” – mostrando que você ouviu a mensagem e viu ‘a luz’.

Eles procuram, em suma, através da conversão da classe dirigente, subverter e derrubar as antigas divindades.

Biden gosta de elogiar o excepcionalismo da “nossa democracia”. Ou seja, disse ele em seus comentários comemorativos sobre os ataques de 11 de setembro, “aquilo que nos torna únicos no mundo… Temos uma obrigação, um dever, uma responsabilidade de defender, preservar e proteger ‘nossa democracia’… sob ameaça… A própria democracia que aqueles terroristas em 11 de setembro tentaram enterrar no fogo ardente, fumaça e cinzas”.

Biden, no entanto, não se refere à democracia genérica no sentido mais amplo, mas à enunciação da elite liberal americana de sua hegemonia global (definida como “nossa democracia”)

A colunista do Washington Post e colaboradora da MSNBC , Jennifer Rubin (há muito citada pelo Washington Post como sua ‘colunista republicana’ para ‘equilibrar’) agora rejeita a própria noção de que argumentos têm ‘lados’ – imputando assim uma falsa racionalidade aos conservadores:

“Temos que coletivamente, em essência, incendiar o Partido Republicano . Temos que exterminá-los – porque se houver sobreviventes, se houver pessoas que resistam a essa tempestade, eles farão isso de novo … A dança Kabuki em que Trump, seus defensores e seus apoiadores são tratados como racionais (inteligentes até!) vem de uma mídia corporativa que se recusa a descartar … essa falsa equivalência”.

E Biden, em um discurso na Filadélfia recentemente, disse praticamente o mesmo que Rubin: em um cenário misteriosamente banhado em luz vermelha e negra, no histórico Independence Hall, ele estendeu inequivocamente as ameaças do exterior para alertar contra a ameaça de um terror diferente, mais perto de casa – de “Donald Trump e os republicanos do MAGA”, que ele disse, “representam um extremismo que ameaça os próprios fundamentos da nossa república”.

O preceito central dessa mensagem apocalíptica atravessou o Atlântico para agora capturar e converter a classe dirigente de Bruxelas. Isso não deveria nos surpreender: o mercado interno baseado em regulamentação da UE foi precisamente destinado a substituir a contenção política pelo gerencialismo tecnológico. Mas a falta de qualquer discurso energizado (a chamada ‘lacuna democrática’) tornou-se cada vez mais a lacuna imperdível.

As euro-élites precisavam desesperadamente de um sistema de valores para preencher a lacuna . A solução, no entanto, estava à mão:

David Brooks, autor de Bobos in Paradise , (ele mesmo um colunista liberal do New York Times ), argumentou que de vez em quando surge uma classe revolucionária que rompe com estruturas antigas. Essa classe de autoproclamados boêmios burgueses – ou ‘bobos’ (como ele os chamava) – estavam acumulando uma enorme riqueza e passaram a dominar os partidos de esquerda em todo o mundo – partidos que anteriormente eram veículos para a classe trabalhadora (uma classe que os bobos desprezam sem reservas).

Brooks admite que, inicialmente, ele foi persuadido por esses bobos (liberais), mas que esse foi seu grande erro: “O que quer que você queira chama-los [ os bobos] se uniram em uma elite brâmane insular e inter-casada que domina cultura, mídia, educação e tecnologia”. Mas ele reconhece: “Eu não antecipei o quão agressivamente… nós buscaríamos impor valores de elite através de códigos de fala e pensamento. Eu subestimei a forma como a classe criativa conseguiria erguer barreiras em torno de si para proteger seu privilégio econômico… E subestimei nossa intolerância à diversidade ideológica”.

Simplificando, este código de pensamento que retrata seus inimigos salivando para enterrar ‘nossa democracia’ em fogo ardente, é a ponta da lança de Washington. A partir disso, e do ‘messianismo’ do Clube de Roma para a desindustrialização, as euro-élites obtiveram sua nova e brilhante seita de pureza absoluta e virtude imaculada – preenchendo a lacuna da democracia. Resultou na convocação de uma vanguarda cuja fúria proselitista deve se concentrar no “Outro”. “Outro” significando aqui, a soma de ‘não crentes’ que deveriam ser trazidos à luz, seja por coerção ou pela espada.

Nós, na Europa, já estamos no segundo estágio (isto é, Roma 313 – 380 AD) que viu a marcha constante da tolerância rumo à perseguição dos ‘pagãos’. Os novos fanáticos já estavam profundamente enraizados na classe de elite da Europa e nas instituições do poder estatal na década de 1970. E agora estamos presos na fase culminante, na qual se tenta derrubar o Panteão da velha ordem, de modo a estabelecer um novo mundo “desindustrializado” que lavará também os pecados ocidentais do racismo, patriarcado e heteronormatividade.

Von der Leyen, ao fazer seu discurso de “estado da união” ao parlamento, ecoa Biden quase exatamente:

“Não devemos perder de vista a forma como os autocratas estrangeiros estão mirando nossos próprios países. Entidades estrangeiras são institutos de financiamento que minam nossos valores. A desinformação deles está se espalhando da internet para os corredores de nossas universidades… Essas mentiras são tóxicas para nossas democracias. Pense nisto: introduzimos legislação para examinar o investimento estrangeiro direto por questões de segurança. Se fizermos isso por nossa economia, não deveríamos fazer o mesmo por “nossos valores”? Precisamos nos proteger melhor das interferências malignas… Não permitiremos que nenhum cavalo de Tróia da autocracia ataque ‘nossas democracias’ por dentro”.

Moeini e Carment, do Institute for Peace & Diplomacy, argumentaram que a política dos EUA deu um ciclo completo: do aviso inicial de Bush ao mundo externo de que, na Guerra ao Terror, você está ‘com nós ou contra nós’ – para Biden “instrumentalizando o mito de nossa democracia para ganhos partidários”. A verdade é que isso também se aplica à Europa.

Vista em conjunto, a retórica de Biden retrata a guerra de seu governo contra o “fascismo MAGA” em casa marchando em sincronia com o objetivo de derrotar militarmente autocracias no exterior. Eles se tornaram apenas dois lados da mesma moeda: “quase-fascistas” domésticos, por um lado, e Russkiy Mir, por outro. Esses “pagãos” são realmente um, insiste o novo código de pensamento.

“Essa lógica agora se tornou o princípio operacional por trás do que pode ser chamado de Doutrina Biden , que deverá ser revelada na próxima Estratégia de Segurança Nacional do governo. Sustenta que a luta pela democracia é incessante, totalizante e abrangente: “uma batalha pela alma” dos Estados Unidos e o “desafio do nosso tempo” (derrotar a autocracia). Neutralizar a suposta ameaça do fascismo em casa, personificada pelo MAGA e pelo ex-presidente Trump, é parte de uma luta apocalíptica maior para defender a ordem liberal no exterior”.

Apesar da união dos ‘bobos’ americanos com a ramificação da classe guerreira da UE, continua sendo um fato que muitos ao redor do mundo ficaram surpresos com a vivacidade pura com que a liderança em Bruxelas caiu para a ‘linha’ de Biden que defende para uma longa guerra contra a Rússia – uma exigência de conformidade europeia nesta empreitada que parece tão claramente contrária aos interesses econômicos e à estabilidade social europeia. Simplificando, uma guerra que parece irracional.

Essa indiferença sugeriria outra coisa. Fala antes, em outro nível, de algumas outras profundas raízes emocionais europeias e justificativas ideológicas distintas.

Durante décadas, os líderes soviéticos se preocuparam com a ameaça do “revanchismo alemão”. Uma vez que a Segunda Guerra Mundial pode ser vista como uma vingança alemã por ter sido privado da vitória na Primeira Guerra Mundial, o agressivo alemão Drang nach Osten [expandir para o leste – nota do tradutor] não poderia surgir novamente, especialmente se contasse com o apoio anglo-americano?

Essa preocupação diminuiu consideravelmente no início da década de 1980, mas, como um ex-embaixador indiano, MK Bhadrakumar, observou no ano passado, é evidente uma inquietação russa mais ampla, que vê a Alemanha à beira de uma transição histórica “que mantém um paralelo perturbador com a transição de Bismarck no cenário europeu pré-Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, da República de Weimar à Alemanha nazista, e que levou a duas guerras mundiais”. Simplificando, o militarismo alemão.

Originalmente sugerido por um grupo de políticos alemães aposentados de ambos os principais partidos alemães, e liderado e inspirado pelo filósofo Jürgen Habermas, um grupo em 2018 sugeriu que, com a Rússia e a China “testando cada vez mais severamente… a unidade da Europa, [e] nossa vontade para defender o nosso modo de vida”, só poderia haver “uma resposta: solidariedade, ou seja a criação de um exército europeu seria o primeiro passo para uma “integração mais profunda da política externa e de segurança baseada nas decisões da maioria” do Conselho Europeu [ Conselho Europeu(!!!), onde ninguém é eleito. Depois dizem que sou demasiado pessimista, quando falo em declínio cognitivo massivo no ocidente – nota do tradutor].

Bem, este impulso alemão para o militarismo como caminho para a solidariedade, ordem e conformidade é agora a ponta da lança europeia: um Reich da UE.

O chanceler Olaf Scholz pediu, em 29 de agosto, uma União Européia expandida e militarizada sob a liderança alemã. Ele afirmou que a operação russa na Ucrânia levantou a questão de “onde estará a linha divisória no futuro entre esta Europa livre e uma autocracia neo-imperial”. Não podemos simplesmente assistir, disse ele, “enquanto países livres são varridos do mapa e desaparecem atrás de muros ou cortinas de ferro” (papagaiando Biden).

Anteriormente, a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, em um discurso em Nova York em 2 de agosto, havia esboçado uma visão de um mundo dominado pelos EUA e pela Alemanha. Em 1989, o presidente George Bush ofereceu à Alemanha uma “parceria na liderança”, afirmou Baerbock. Mas na época, a Alemanha estava muito ocupada com a reunificação para aceitar a oferta. Hoje, ela disse, as coisas mudaram fundamentalmente: “Agora chegou o momento em que temos que criá-lo: Uma parceria conjunta na liderança”.

Afirmando que a ‘parceria de liderança’ é entendida em termos militares, ela disse: “Na Alemanha, abandonamos a crença alemã de longa data na ‘mudança por meio do comércio’… A UE deve tornar-se uma União capaz de lidar com os Estados Unidos em pé de igualdade: numa parceria de liderança”.

Como parte desse papel de liderança, Diana Johnstone, ex-secretária de imprensa do Grupo Verde no Parlamento Europeu, escreve que Scholz agora endossa o apelo por “uma mudança gradual para decisões majoritárias na política externa da UE” para substituir a unanimidade exigida hoje. “O que isso significa deve ser óbvio para os franceses. Historicamente, os franceses têm defendido a regra do consenso – para não serem arrastados para uma política externa que não querem. Os líderes franceses sempre exaltaram o mítico “casal franco-alemão” como garantidor da harmonia europeia, mas principalmente, para manter sob controle as ambições alemãs”.

Mas Scholz diz que não quer “uma UE de estados ou diretorias exclusivas”, o que implica o divórcio final desse “casal”. Com uma UE de 30 ou 36 estados, observa Scholz, “é necessária uma ação rápida e pragmática”. E podemos ter certeza de que a influência alemã sobre a maioria desses novos estados membros pobres, endividados e muitas vezes corruptos produzirá a maioria necessária.

Em suma, o reforço militar da Alemanha dará substância à notória declaração de Robert Habeck em Washington em março passado de que: “Quanto mais forte a Alemanha servir [ao imperio anglo-saxão – nota do tradutor], maior será o seu papel”. Habeck, do Partido Verde, é agora o ministro da Economia da Alemanha e a segunda figura mais poderosa do atual governo alemão.

A observação foi bem compreendida em Washington: ao servir o império ocidental liderado pelos EUA, a Alemanha está fortalecendo seu papel como líder europeu. Assim como os EUA armam, treinam e ocupam a Alemanha, a Alemanha fornecerá os mesmos serviços para os estados menores da UE, principalmente a leste, escreve Johnstone.

Provavelmente, nada disso tem chance de tomar forma institucional da UE: no entanto, desde o início da operação russa na Ucrânia, a ex-política alemã Ursula von der Leyen usou sua posição como chefe da Comissão da UE para impor cada vez mais sanções drásticas à Rússia, levando à ameaça de uma grave crise energética europeia neste inverno (agora inescapável pela sabotagem dos oleodutos Nordstream). Seu apoio à Ucrânia e sua hostilidade à Rússia parecem ilimitados.

A ministra das Relações Exteriores do Partido Verde da Alemanha, Annalena Baerbock, tem a mesma intenção de “arruinar a Rússia”. Proponente de uma “política externa feminista”, Baerbock expressa a política em termos pessoais: “Se eu fizer a promessa ao povo na Ucrânia, estaremos com você enquanto você precisar de nós”, disse ela recentemente.

Não é apenas vingança de sangue após séculos de guerra da Alemanha com a Rússia. É isso, mas também parece impelido pelo velho recurso de qualquer classe revolucionária que pretenda derrubar algo antigo.

Como? Por aquele velho alerta quando o objetivo é derrubar um Panteão de velhos valores e heróis: “ Il faut du sang pour cimenter la revolution ” (“Deve haver sangue para cimentar a revolução”), disse Madame Roland durante a Revolução. Estamos à beira de um coup de main de engenharia de elite tomando o poder.

O cristianismo latino no século IV tentou literalmente desmantelar um milênio de civilização antiga (desconsiderada como “pagã”) – suprimindo-a com espada e fogo; queimando sua literatura (a biblioteca de Alexandria); e suprimindo seu pensamento (os cátaros). No entanto, não foi totalmente bem-sucedido. Valores antigos simplesmente não iriam embora – e eles ressurgiram de forma energizada novamente durante o Renascimento do século XII.

Apenas para serem suprimidos novamente pelo ‘racionalismo’ iluminista…

 

Fonte: https://strategic-culture.org/news/2022/10/03/tearing-down-the-pantheon-of-western-founders-and-heroes/

 

 

 

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